Tenho lido, ouvido e visto nas redes sociais e nos OCS a forma como muitos “chicoexperts” e “tudólogos”, vertem, cada um conforme a sua simpatia ou ideologia, meias-verdades sobre as verdadeiras causas da guerra na Ucrânia. Uns acusando Putin de ser o único responsável desta guerra. Outros acusando Zelensky e a Ucrânia por não terem respeitado os Acordos de Minsk, causando, assim, a guerra. A memória é curta e a verdade é a conveniente para cada um dos “chicoexperts” e “tudólogos” que emitem as opiniões do alto da sua conveniência. Factos são factos e todos aqueles que acompanharam o que se seguiu à queda da URSS em 1991, desde que tenham alguma honestidade intelectual, julgarão por si do porquê de se chegar à verdadeira situação, que é gravíssima, onde se chegou.
Muitos dos tais “chicoexperts” e “tudólogos” recuam as causas do conflito à queda (leia-se golpe de Estado) que obrigou o presidente ucraniano democraticamente eleito Víctor Yanukovych a fugir para a Rússia por se ter aproximado de Putin, legitimando, assim, a intervenção russa no conflito.
Outros “chicoexperts” e “tudólogos” apontam o patrocínio de Putin aos independentistas da região da bacia do Donets (Donbass) e a consequente invasão da Crimeia como as verdadeiras causas da guerra.
O que todos os “chicoexperts” e “tudólogos” não referem, quiçá por desconhecimento ou conveniência, é o teor do Memorando de Budapeste. Ainda não vi, li ou ouvi nada sobre este tão importante documento.
Após o colapso da URSS e a consequente independência das suas Repúblicas, a Ucrânia ficou com o terceiro maior arsenal nuclear do mundo atrás dos EUAN e da nova Federação Russa. Para o que de facto interessa, em Dezembro de 1994, Bill Clinton, pelos EUAN, Boris Yeltsin, pela Federação Russa, John Major, pelo Reino Unido e Leonid Kravtchuk pela Ucrânia, assinaram o memorando que proibia a Federação Russa, o Reino Unido e os Estados Unidos de ameaçar ou usar qualquer força militar ou coacção económica contra a Bielorrússia, o Cazaquistão e a Ucrânia, "exceto em caso de legítima defesa ou em concordância com a Carta das Nações Unidas". Como resultado de outros acordos e do memorando, entre 1993 e 1996, a Bielorrússia, o Cazaquistão e a Ucrânia desistiram das suas armas nucleares e entregaram-nas à Federação Russa. Em troca receberam as Garantias de Segurança que consistiam no respeito pela independência, soberania e pelas fronteiras existentes à data da assinatura, abstendo-se de ameaçar ou de usar a força contra aqueles países, assim como de usar a pressão económica para influenciar as suas políticas. A Federação Russa comprometeu-se ainda abster-se do uso de armas nucleares contra a Bielorrússia, o Cazaquistão ou a Ucrânia.
Creio ser hoje claro quem não cumpriu com aquilo a que se vinculou por compromisso internacional.
Percebe-se, assim, porque insiste Zelensky, para obter a paz, em ter garantias de segurança.
A Europa desperdiçou já três décadas para desenvolver uma indústria militar comum e constituir umas Forças Armadas europeias. Ao invés apostou no pacifismo assente numa qualquer superioridade intelectual a que se arroga a esquerda europeia. Está e vai sair-lhe muito cara esta visão do mundo limitada pelos antolhos do neoliberalismo que morreu na sala oval na passada sexta-feira.
Para se compreender o conflito no leste da Europa há que primeiro perceber quem são os russos e qual é a sua concepção e necessidade vital de profundidade estratégica. A minha opinião assenta no muito que li sobre a matéria, quer de académicos, quer de militares, mas sempre apoiado – e muito – na minha própria experiência pessoal, pois estive por diversas vezes quer na Rússia, quer na Ucrânia, no cumprimento dos vários tipos de missões que me confiavam. E daqui vem a minha primeira preocupação quando vejo e ouço os “chicoexperts” e “tudólogos” verterem a sua “verdade” e com isso moldarem de alguma forma a opinião pública.
A Rússia é meio mundo terrestre, ou quase, compreendendo 11 dos 24 fusos horários. O animal que a simboliza – mesmo para os russos – é o urso, que na sua língua se denomina venasit (Выносить), mas a que os russos preferem chamar de medved (медведь), literalmente aquele que gosta de mel, receando por superstição invocar o seu lado mais negro. O povo russo é como o seu Urso. Ou é medved quando não o incomodam ou venasit quando o acossam.
W. Churchil nas suas memórias revela uma lucidez cristalina de conhecimento sobre os russos que mais político nenhum revelou desde então. Quando lhe perguntaram o que pensava sobre eles disse: «Estou convencido de que não há nada que respeitem menos do que a fraqueza, especialmente a fraqueza militar». Tinha e ainda tem absoluta razão.

A Rússia europeia é uma extensa planície que se estende desde as fronteiras a oeste até aos montes Urais, sem qualquer acidente orográfico de relevo que impeça ou dificulte seriamente uma invasão terrestre a partir do Oeste. Pese embora ninguém no seu mais sano juízo pense invadi-la, os russos não estão tão certos disso e a demonstrá-lo estão factos históricos. Em 1605 foram invadidos pelos polacos, seguidos pelos suecos em 1708 e em 1812 pela frança napoleónica. Em 1853, durante a Guerra da Crimeia, foi invadida por uma coligação formada pelo Imperio Otomano, a França, o Reino Unido e o então Reino da Sardenha. Finalmente os alemães invadiram-na duas vezes, em 1918 e 1941, nas I e II Guerras Mundiais.
A fragilidade estratégica russa condicionada pela natureza do terreno está a oeste, pois uma invasão pelo Ártico ou pelos Urais seria um suicídio militar, mesmo para a China. A única fortaleza russa na sua planície do norte e centro europeu é o clima. A história provou-o. Em qualquer estação do ano o clima é o maior aliado russo. A verdadeira preocupação de segurança russa é, pois, a de criar estados tampão entre o seu território e a Europa Ocidental. A Ucrânia é, assim, vital para a sobrevivência, segurança e profundidade estratégica da Rússia. Os académicos europeus em ciência política e relações internacionais sabem-no, como o sabe a mens militari europeia que o tem veiculado a políticos de várias gerações e estes têm ignorado olimpicamente a sua voz.
Daí que o alargamento da NATO, crente na fragilidade russa do pós-comunismo, constituiu a primeira e maior preocupação de Putin desde que subiu ao poder. A Europa política não deu ouvidos a muitos académicos e militares e, com os patrocínios alemão e americano ocorreu um verdadeiro golpe de estado nas ruas da Ucrânia, obrigando Víctor Yanukovych, presidente eleito democraticamente, a fugir para a Rússia, tendo o ex-campeão mundial de boxe Vitaly Klitschko, apoiado por facções moderadas pró-ocidentais, mas também por facções neo-nazis anti-russas, assumido o poder.
A primeira declaração deste governo foi a de abolir a língua russa nas regiões em que a maioria étnica é russa, obliterando a realidade demográfica, pois as regiões de Kharkov, Luhansk, Donetsk, kherson, Mykolaiv e Odessa foram russas, otomanas, soviéticas e depois ucranianas, mas a população russa ficou sempre lá com as suas tradições, língua, religião, costumes e orgulho nacional.
À imprensa europeia só interessava o que se passava em Kyiv (Kiev). Na sua agenda politizada ignoraram as enormes manifestações pró-russas a leste, na região da bacia do rio Donets (Donbass) que integra as regiões de Donets e Luhansk de esmagadora maioria étnica russa, assim como o é a Crimeia.
A Europa e a NATO, por via do alargamento, acossaram uma vez mais o medved e ele tornou-se venasit. Putin não teve outra alternativa e anexou a Crimeia com base numa lei federal que obriga a Federação Russa a intervir quando russos étnicos estejam em perigo.
Putin é um agressor porque invadiu e ocupa território ucraniano. Sem dúvida. O que é o Reino Unido em Gibraltar e na Irlanda do Norte? O que é Espanha no Norte de África e em Olivença? O que é a Turquia em Chipre? O que é o Kosovo sérvio ocupado pelos albaneses?